Projeto de pesquisa

Resumo: 

A prática preservacionista foi, durante mais de um século, campo de atuação praticamente exclusivo de arquitetos. Inicialmente restrito aos edifícios de uma chamada arquitetura maior, na medida em que o século XX avançava foi se expandindo enquanto prática e reconhecendo como patrimônio, em decorrência da sua abertura para outras áreas do conhecimento, entre as quais o Urbanismo, a Sociologia, a Arqueologia, a Geografia, o Direito, a Antropologia e a Ciência Política, bens móveis, natureza, cidades e, mais recentemente, paisagens e manifestações culturais intangíveis. Apesar das suas diversas expressões, interessa a essa pesquisa, especificamente, a cidade como patrimônio, feita objeto de uma análise de caráter simultaneamente micro e macro, apoiada na aproximação da Arquitetura e Urbanismo com as disciplinas da Antropologia e da Ciência Política, respectivamente. Tal interesse pela cidade como patrimônio se justifica, prioritariamente, pelos dados da ONU - Organização das Nações Unidas (2018), que apontam para uma crescente urbanização da população mundial, o que sugere serem os centros urbanos o lugar, por excelência, da vida humana e, consequentemente, da manifestação de seus problemas e soluções. Justifica-se, ainda, porque a cidade sempre foi o lócus de ação de arquitetos e urbanistas e, pelo menos desde os anos sessenta do século passado, após a Carta de Veneza, 1964 (CURY, 2000), vem assumindo cada vez mais proeminência nas questões preservacionistas. Entretanto, quando merece atenção de arquitetos e urbanistas atuantes no campo da preservação do patrimônio, a cidade, ou parte dela, tem sido vista, majoritariamente, como bem cultural objeto de intervenção arquitetônica e/ou urbanística, de políticas públicas e legislações específicas nos níveis nacional (FONSECA, 2005) ou local (RIBEIRO, 2005; REIS, 2001, no caso de Brasília), raramente como instrumento de desenvolvimento local e inserção internacional (MEDEIROS, 2002) e, com frequência, palco de expressões intangíveis. Assim, o presente projeto de pesquisa propõe uma aproximação com a Antropologia, do ponto de vista da microanálise, do município em si mesmo, no sentido de ir além do entendimento da cidade patrimônio como espaço de manifestações imateriais. Isso porque, para o arquiteto e urbanista, o diálogo entre os campos do Patrimônio Cultural e da Antropologia parece encontrar alicerce no “Turista Aprendiz”, de Mário de Andrade (ANDRADE, 2015), ainda nos anos quarenta dos mil e novescentos. Como é sabido, é de Mário de Andrade o primeiro texto de institucionalização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, que é preterido em função do Decreto-lei n0 25, de 1937, por ter sido considerado muito “avançado” para a época. Esse passado partilhado entre Arquitetura e Antropologia, bem anterior aos trabalhos de Gilberto Velho e a sua Antropologia Urbana, talvez tenha limitado o entendimento do arquiteto e urbanista, acerca da potencial contribuição antropológica ao campo preservacionista, à dimensão imaterial dos bens culturais. Pesquisas mais recentes (DE SOUZA SANTOS, 2020; ALBERT, 2017), nem sempre (re)conhecidas na área da Arquitetura e Urbanismo, têm demonstrado o valor intrínseco do estudo antropológico e etnográfico para a preservação das cidades patrimônio – sobretudo as médias - ao atestarem o lugar de destaque da governança local e ampliarem a sua centralidade às questões da sua operacionalização, desvendando-lhes a natureza em relação à qualidade e ao significado da participação cidadã nos processos decisórios relativos à prática preservacionista, dentro do planejamento e projeto do espaço urbano. Sob esse ponto de vista antropológico, a cidade como lócus para a política, de uma maneira geral, e preservacionista, em particular, ganha novos contornos, exigindo do Arquiteto-Deus uma postura menos técnica e mais humana de escuta e atenção a um outro, detentor de um discurso não-oficial, cidadão. Como demonstrado por De Souza Santos (2019), ao deixar em segundo plano o primado do especialista, as tensões entre as demandas provenientes da cidade patrimônio real, vivenciada cotidianamente pelos seus moradores, e a cidade patrimônio turística ou “empresarial”, afloram. De fato, o processo de construção social do patrimônio cultural se efetua alicerçado em temporalidades, onde o binômio passado/futuro é uma constante. Na prática preservacionista, no planejamento e projeto do espaço urbano, para o especialista, o técnico, o arquiteto e urbanista, o presente é sempre o tempo de preservar o passado, materializado na cidade patrimônio, para o futuro. Para o cidadão comum, no entanto, o presente é o tempo do agora, da cidade à qual é premente somar transporte público, saneamento básico ou moradia e diminuir poluição ou violência. No discurso do saber competente, a narrativa positiva na tessitura do passado e do futuro têm sido usada como instrumento capaz de suprir as muitas insuficiências, negatividades, de um tempo presente. (Nilsen, 2011 apud DE SOUZA SANTOS, 2019). Nesse sentido, o projeto propõe responder, na escala micro, por meio de uma perspectiva ao mesmo tempo arquitetônica, urbanística e antropológica/etnográfica, a seguinte questão: de que maneira se dão na(s) cidade(s) patrimônio(s) as temporalidades da construção social e política da prática preservacionista, no planejamento e projeto do espaço urbano, estando essa atada, de um lado, à polaridade passado/futuro e, de outro lado, ao presente? Quanto à escala macro e a aproximação com a Ciência Política essa se explica de duas maneiras. Primeiro, pelo aporte que as recentes teorias, acerca da heterogeneidade do Estado Brasileiro (ABERS, 2000) ou da sociedade civil (RICH, 2019), representam para ajudar a explicar processos de governança no nível local. Segundo porque, conforme demonstrado por Medeiros (2002), a espacialização política do processo de construção social da prática preservacionista e seus reflexos no planejamento e projeto do espaço urbano, há muito não se dá apenas no nível micro, nas esferas do Estado Nacional ou dos municípios. Daí a proposta da pesquisa em privilegiar, também, a dimensão macro, global, cujo poder na edificação do patrimônio cultural também é operacional. (MEDEIROS, 2002). É Acuto (2013) quem eleva a cidade, por meio de um dos ramos da Ciência Política, as Relações Internacionais, à categoria de componente fundamental da governança global. Segundo o autor, a cidade não deve ser vista apenas como o lócus para a política, mas como ator na política, conectando processos entre escalas micro (locais) e macro (globais) no enfrentamento de questões de interesse mundial. O foco das pesquisas do autor são as chamadas cidades globais, observadas a partir do problema do aquecimento, do clima. Mas, seria esse protagonismo válido quando se pensa em cidades não globais e na prática preservacionista? Aqui, no projeto de pesquisa, lança-se uma dupla hipótese. De um lado, a de que a preservação do patrimônio cultural, pelo menos desde a Convenção da Unesco de 1972 (CURY, 2000) que instituiu a Lista do Patrimônio Cultural da Humanidade, constitui, assim como o clima, um desafio contemporâneo, local e global. De outro lado, a de que para se assumir como ator na política, a cidade não precisar ser, necessariamente, global. Na perspectiva macro, de aproximação com a Ciência Política, ao projeto interessa entender qual o papel da política preservacionista nas conexões entre cidade(s) e a governança global. Seria a cidade ator político capaz de influenciar a geografia preservacionista global e, por consequência, o planejamento do projeto do espaço urbano? Seria possível falar de governança global no campo preservacionista?

Integrantes: 

Ana Elisabete de Almeida Medeiros (coordenador)

Financiamento: não